
A capoeira nasceu como expressão de resistência dos africanos escravizados no Brasil. Muito antes de ganhar academias, cordéis e reconhecimento mundial, ela foi forjada nos canaviais, nos quilombos e nas ruas, como arma de sobrevivência e afirmação cultural. O século XIX foi um período decisivo, em que a capoeira enfrentou perseguição, criminalização e estigmatização, mas também se consolidou como símbolo de luta e identidade.
Capoeira nos quilombos
Os quilombos — comunidades formadas por africanos que fugiam da escravidão — foram espaços de liberdade e também de preservação cultural. Ali, a capoeira floresceu como prática de defesa, mas também como celebração da ancestralidade. Nos relatos coloniais, capoeiristas são descritos como guerreiros ágeis, capazes de enfrentar tropas armadas com destreza e astúcia.
“A capoeira foi a arma do escravo na luta pela liberdade.”
— Historiador Waldeloir Rego
A capoeira nas ruas do Rio de Janeiro
No século XIX, especialmente após a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, a capoeira ganhou visibilidade nas ruas. Grupos de capoeiras, conhecidos como maltas, atuavam nos bairros populares. Essas maltas tinham identidade própria, símbolos e até hierarquia. Algumas eram usadas por partidos políticos e autoridades locais como força de choque, o que contribuiu para a imagem ambígua da capoeira: ao mesmo tempo temida e respeitada.
A violência associada a esses grupos levou o Estado imperial a reprimir duramente a prática. Capoeiristas eram presos, açoitados e até enviados para servir à força no exército. Apesar disso, a capoeira não desapareceu — adaptou-se, reinventou-se e manteve sua chama viva nos subúrbios, nos portos e nas feiras populares.
A criminalização no Código Penal de 1890
Com a Proclamação da República, em 1889, esperava-se que a capoeira fosse reconhecida como parte da cultura popular. O que ocorreu, no entanto, foi o oposto: em 1890, o novo Código Penal da República criminalizou explicitamente a prática. O artigo 402 estabelecia prisão de dois a seis meses para quem fosse pego “em exercícios de capoeiragem”. Os mestres eram alvo especial, podendo receber penas ainda maiores.
A repressão foi intensa: rodas eram interrompidas pela polícia, e a prática era associada à marginalidade. Mesmo assim, a capoeira resistiu. Jogada em terreiros, nas festas populares e escondida sob disfarces de dança ou brincadeira, continuou a ser transmitida de mestre para aluno.
Rumo à legalização
Já no início do século XX, figuras como Besouro Mangangá, Manduca da Praia e outros capoeiristas lendários mantiveram viva a prática, desafiando a repressão e reforçando a aura mítica da capoeira como arte indomável. A virada, porém, viria com Mestre Bimba, que na década de 1930 estruturou a Capoeira Regional como uma prática pedagógica e esportiva.
Em 1937, Bimba apresentou sua arte ao então presidente Getúlio Vargas, que ficou impressionado. Pouco depois, a capoeira deixou de ser perseguida oficialmente e passou a ser reconhecida como símbolo nacional. A partir daí, iniciou-se um novo ciclo de expansão e valorização cultural.
Um legado de resistência
O século XIX deixou marcas profundas na capoeira. A perseguição moldou sua malícia, seu caráter disfarçado e a sua filosofia de adaptação. A criminalização reforçou a identidade de resistência e resiliência. A legalização, por sua vez, abriu caminho para que a capoeira se tornasse patrimônio cultural do Brasil e, mais tarde, da humanidade.
Assim, lembrar da capoeira no século XIX é lembrar de uma arte que sobreviveu ao açoite, às prisões e ao preconceito, e que transformou dor em beleza, opressão em jogo e violência em cultura. É essa herança de luta que faz da capoeira muito mais que um esporte: faz dela uma expressão de liberdade.



