
Um mestre forjado na Bahia
Nascido em 5 de abril de 1889, filho de José Pastinha, um imigrante espanhol, e de Raimunda dos Santos, uma mulher negra, Vicente cresceu em meio aos contrastes culturais da Bahia. Sua mãe sustentava a casa vendendo acarajé e lavando roupas. Aos dez anos, aprendeu capoeira com um africano chamado Benedito, natural de Angola. Conta-se que Benedito lhe disse: “O tempo que você perde empinando raia, venha ao meu cazua que vou lhe ensinar coisa de muito valia.” Essa frase marcaria para sempre o destino do menino. Aos 12 anos entrou para a Escola de Aprendizes Marinheiros, onde aprendeu esgrima e ginástica. Aos 20 anos deixou a Marinha e abriu sua primeira escola em uma oficina de bicicletas. Trabalhou como engraxate, vendedor de jornais, guarda e até alfaiate, mas sempre se considerou antes de tudo um artista. Pintava, escrevia e deixou registros que o consagram não apenas como mestre, mas como intelectual popular.A criação do CECA
Após um período afastado, em 1941 Pastinha foi convidado por Amorzinho e Aberrê a reassumir o berimbau. Nascia o Centro Esportivo de Capoeira Angola, com apoio de nomes como Noronha, Onça Preta e Livino Diogo. O CECA tornou-se referência, oferecendo aulas em espaço organizado, com uniformes preto e amarelo (inspirados no Ypiranga Esporte Clube), hierarquia e disciplina. Para dar legitimidade à sua arte, Pastinha instituiu juízes nas rodas e proibiu golpes letais. Mais do que luta, sua capoeira era também música, canto, poesia e ancestralidade. O jogo deveria ser belo, cadenciado e cheio de malícia. Ao lado de contemporâneos como Caiçara e Canjiquinha, consolidou uma tradição distinta da Capoeira Regional de Mestre Bimba.Resistência e filosofia
Para Mestre Pastinha, a Angola era a capoeira legítima, herança dos africanos escravizados, moldada nos quilombos e engenhos. Não era apenas combate, mas também resistência cultural. Seu estilo valorizava a calma, o jogo de dentro, a astúcia e a malícia, afastando-se da violência. A música tinha papel central, com berimbau, pandeiro, reco-reco, agogô e atabaque marcando o ritmo. Entre os toques mais conhecidos estavam São Bento, Santa Maria, Cavalaria e Amazonas. Sua filosofia opunha-se à Regional, mas esse contraste acabou enriquecendo a capoeira, tornando-a múltipla e diversa. Enquanto Bimba buscava eficiência marcial, Pastinha defendia o lúdico, a música e a preservação da tradição. Essa tensão criativa moldou a identidade da capoeira moderna.Reconhecimento internacional
Nos anos 1960, Pastinha ainda surpreendia com sua agilidade mesmo idoso. Em 1966, participou do Primeiro Festival Mundial de Arte Negra, em Dakar, representando o Brasil ao lado de João Grande, Gato Preto e Camafeu de Oxóssi. Ali, a Capoeira Angola foi apresentada como arte ancestral e expressão cultural viva da diáspora africana.
Últimos anos
Apesar da importância, enfrentou dificuldades. Em 1971, a prefeitura retirou-lhe o prédio do CECA para reformas que nunca lhe devolveriam. Passou os últimos anos quase cego, em pobreza, e morreu em 13 de novembro de 1981, aos 92 anos, no asilo D. Pedro II, em Salvador. Sua despedida foi marcada por sentimento de abandono por parte do Estado e de alguns antigos discípulos, mas também pela reverência de quem reconhecia sua grandeza.
O legado e a influência
O impacto de Mestre Pastinha ultrapassa a Capoeira Angola. Seus discípulos João Pequeno e João Grande continuaram seu trabalho, difundindo a Angola para novas gerações e para o mundo. Sua filosofia de organização, respeito ao ritual e centralidade da música influenciou até mesmo grupos oriundos da Capoeira Regional.
A ABADÁ-Capoeira, fundada em 1988 por Mestre Camisa — discípulo de Bimba —, herdou parte desses valores. Se nasceu da Regional, também se inspira em Pastinha na defesa da capoeira como patrimônio cultural, no cuidado com a musicalidade e na valorização da roda como espaço sagrado.
Hoje, quando um berimbau inicia o toque de Angola em qualquer canto do mundo, é impossível não ouvir a voz de Pastinha ecoando. Sua capoeira é memória, resistência e arte: um elo entre a Bahia, a África e o mundo.
Relações e contrastes entre Mestre Pastinha e Mestre Camisa
A trajetória de Mestre Pastinha representa a raiz que mantém viva a essência da Capoeira Angola, guardando sua mandinga, sua filosofia e sua ancestralidade. Décadas mais tarde, Mestre Camisa surge como o galho que se projeta para o futuro, levando a capoeira a novos horizontes sem perder o vínculo com o passado.
Entre tradição e inovação, esses dois mestres dialogam em silêncio: um preservando a memória ancestral, o outro estruturando caminhos pedagógicos e internacionais. Nesse diálogo de épocas, compreende-se que a capoeira é, ao mesmo tempo, herança e renovação, corpo e espírito, resistência e criação.
Mestre Pastinha foi um alicerce histórico e simbólico da Capoeira Angola. Codificou e difundiu o estilo, enfatizando um jogo cadenciado, de dentro, carregado de mandinga e de valores culturais profundamente enraizados na tradição afro-brasileira. Para ele, a capoeira era também filosofia de vida, onde musicalidade, ritualidade e ética tinham tanto peso quanto os movimentos físicos.
Mestre Camisa (José Tadeu Carneiro Cardoso), discípulo de Mestre Bimba, surge em um contexto posterior, quando a capoeira já se expandia para além do Brasil e buscava maior sistematização pedagógica. Seu trabalho dialoga tanto com a Angola quanto com a Regional, mas vai além: cria propostas próprias, de caráter pedagógico, organizacional e técnico, que deram origem à ABADÁ-Capoeira, hoje uma das maiores instituições de capoeira do mundo. Enquanto Pastinha consolidava a Angola como guardiã da tradição, Camisa projetava a capoeira para o cenário internacional, unindo tradição e modernidade.
Herança da Angola e preservação tradicional
Mestre Pastinha estruturou a Capoeira Angola em instituições como o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), no Pelourinho, organizando a prática e reforçando elementos como o uniforme amarelo e preto, os cantos tradicionais e o respeito às regras da roda. Ele defendia que a capoeira não era apenas luta, mas um diálogo, um jogo de astúcia, paciência e sabedoria.
Mestre Camisa, embora formado na Regional de Bimba, reconhece e valoriza esse legado. Em sua metodologia, incorporou a importância da mandinga, da musicalidade e do jogo ritualizado, mostrando que a inovação não precisa romper com as raízes. Assim, sua proposta pedagógica mantém viva a essência cultural e filosófica da capoeira, mesmo ao se expandir para novos públicos e contextos.
Inovação e pedagogia organizada
Enquanto Pastinha enfatizava a preservação dos modos antigos, Camisa percebeu a necessidade de estruturar um modelo de ensino capaz de dialogar com a modernidade. Criou um sistema pedagógico formal, com graduações, núcleos espalhados em diversos países e uma metodologia que alia técnica, disciplina e consciência histórica. Sua proposta permitiu que a capoeira fosse ensinada em escolas, universidades, academias e projetos sociais, alcançando milhares de praticantes em diferentes partes do mundo.
Entre suas inovações estão as sequências técnicas progressivas, que permitem ao aluno evoluir gradualmente do domínio da base — ginga, esquivas, ataques — até combinações mais complexas. Essa pedagogia estruturada não apenas fortalece o corpo, mas também forma cidadãos conscientes do valor cultural e social da capoeira.
Diferenciações no jogo e no estilo
O jogo de Pastinha é marcado por movimentos baixos, estratégicos e sutis, realizados em cadência lenta ao som do berimbau, onde a mandinga e o improviso são elementos centrais. Sua capoeira enfatiza a paciência, a observação e a malícia, características que tornaram a Angola um estilo único e respeitado.
Já Camisa, sem abandonar esses aspectos, buscou expandir as possibilidades corporais. Trabalhou movimentos mais amplos e atléticos, exigindo preparo físico e técnica refinada, adaptando o jogo também para palcos, espetáculos e intercâmbios culturais internacionais. Assim, sua proposta equilibra a dimensão tradicional com a dimensão contemporânea, abrindo caminhos para a capoeira no cenário global.
Legado compartilhado
A comparação entre Pastinha e Camisa oferece material valioso para compreender a evolução da capoeira: de tradição oral à metodologia documentada, da roda de bairro à instituição global. Ambos os mestres partilham a visão da capoeira como patrimônio cultural e instrumento de formação humana.
Pastinha entendia a capoeira como diálogo, e não apenas como combate, defendendo valores como respeito, ritualidade e identidade afro-brasileira. Camisa, ao fundar a ABADÁ, reforçou esses princípios, mas somou a eles a disciplina organizacional, a pedagogia estruturada e a integração social através do ensino em larga escala. Juntos, representam dois polos que, em diálogo, mostram a riqueza e a vitalidade dessa arte que é, ao mesmo tempo, tradição ancestral e expressão contemporânea.



