Mestre Pastinha: guardião da Capoeira Angola

No coração de Salvador, no início do século XX, nasceu um menino chamado Vicente Ferreira Pastinha. Seria ele, mais tarde conhecido como Mestre Pastinha (1889-1981), quem daria forma definitiva à Capoeira Angola, transformando-a em uma arte de resistência, disciplina e poesia corporal. A história do Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) confunde-se com a sua vida e revela o esforço de um homem em preservar uma tradição africana no Brasil moderno.
Um mestre forjado na Bahia
Nascido em 5 de abril de 1889, filho de José Pastinha, um imigrante espanhol, e de Raimunda dos Santos, uma mulher negra, Vicente cresceu em meio aos contrastes culturais da Bahia. Sua mãe sustentava a casa vendendo acarajé e lavando roupas. Aos dez anos, aprendeu capoeira com um africano chamado Benedito, natural de Angola. Conta-se que Benedito lhe disse: “O tempo que você perde empinando raia, venha ao meu cazua que vou lhe ensinar coisa de muito valia.” Essa frase marcaria para sempre o destino do menino. Aos 12 anos entrou para a Escola de Aprendizes Marinheiros, onde aprendeu esgrima e ginástica. Aos 20 anos deixou a Marinha e abriu sua primeira escola em uma oficina de bicicletas. Trabalhou como engraxate, vendedor de jornais, guarda e até alfaiate, mas sempre se considerou antes de tudo um artista. Pintava, escrevia e deixou registros que o consagram não apenas como mestre, mas como intelectual popular.
A criação do CECA
Após um período afastado, em 1941 Pastinha foi convidado por Amorzinho e Aberrê a reassumir o berimbau. Nascia o Centro Esportivo de Capoeira Angola, com apoio de nomes como Noronha, Onça Preta e Livino Diogo. O CECA tornou-se referência, oferecendo aulas em espaço organizado, com uniformes preto e amarelo (inspirados no Ypiranga Esporte Clube), hierarquia e disciplina. Para dar legitimidade à sua arte, Pastinha instituiu juízes nas rodas e proibiu golpes letais. Mais do que luta, sua capoeira era também música, canto, poesia e ancestralidade. O jogo deveria ser belo, cadenciado e cheio de malícia. Ao lado de contemporâneos como Caiçara e Canjiquinha, consolidou uma tradição distinta da Capoeira Regional de Mestre Bimba.
Resistência e filosofia
Para Mestre Pastinha, a Angola era a capoeira legítima, herança dos africanos escravizados, moldada nos quilombos e engenhos. Não era apenas combate, mas também resistência cultural. Seu estilo valorizava a calma, o jogo de dentro, a astúcia e a malícia, afastando-se da violência. A música tinha papel central, com berimbau, pandeiro, reco-reco, agogô e atabaque marcando o ritmo. Entre os toques mais conhecidos estavam São Bento, Santa Maria, Cavalaria e Amazonas. Sua filosofia opunha-se à Regional, mas esse contraste acabou enriquecendo a capoeira, tornando-a múltipla e diversa. Enquanto Bimba buscava eficiência marcial, Pastinha defendia o lúdico, a música e a preservação da tradição. Essa tensão criativa moldou a identidade da capoeira moderna.
História da Capoeira

MESTRE PASTINHA JOGANDO

Reconhecimento internacional

Nos anos 1960, Pastinha ainda surpreendia com sua agilidade mesmo idoso. Em 1966, participou do Primeiro Festival Mundial de Arte Negra, em Dakar, representando o Brasil ao lado de João Grande, Gato Preto e Camafeu de Oxóssi. Ali, a Capoeira Angola foi apresentada como arte ancestral e expressão cultural viva da diáspora africana.

Últimos anos

Apesar da importância, enfrentou dificuldades. Em 1971, a prefeitura retirou-lhe o prédio do CECA para reformas que nunca lhe devolveriam. Passou os últimos anos quase cego, em pobreza, e morreu em 13 de novembro de 1981, aos 92 anos, no asilo D. Pedro II, em Salvador. Sua despedida foi marcada por sentimento de abandono por parte do Estado e de alguns antigos discípulos, mas também pela reverência de quem reconhecia sua grandeza.

O legado e a influência

O impacto de Mestre Pastinha ultrapassa a Capoeira Angola. Seus discípulos João Pequeno e João Grande continuaram seu trabalho, difundindo a Angola para novas gerações e para o mundo. Sua filosofia de organização, respeito ao ritual e centralidade da música influenciou até mesmo grupos oriundos da Capoeira Regional.

A ABADÁ-Capoeira, fundada em 1988 por Mestre Camisa — discípulo de Bimba —, herdou parte desses valores. Se nasceu da Regional, também se inspira em Pastinha na defesa da capoeira como patrimônio cultural, no cuidado com a musicalidade e na valorização da roda como espaço sagrado.

Hoje, quando um berimbau inicia o toque de Angola em qualquer canto do mundo, é impossível não ouvir a voz de Pastinha ecoando. Sua capoeira é memória, resistência e arte: um elo entre a Bahia, a África e o mundo.

História da Capoeira

MESTRE PASTINHA DOCUMENTÁRIO

Relações e contrastes entre Mestre Pastinha e Mestre Camisa

A trajetória de Mestre Pastinha representa a raiz que mantém viva a essência da Capoeira Angola, guardando sua mandinga, sua filosofia e sua ancestralidade. Décadas mais tarde, Mestre Camisa surge como o galho que se projeta para o futuro, levando a capoeira a novos horizontes sem perder o vínculo com o passado.

Entre tradição e inovação, esses dois mestres dialogam em silêncio: um preservando a memória ancestral, o outro estruturando caminhos pedagógicos e internacionais. Nesse diálogo de épocas, compreende-se que a capoeira é, ao mesmo tempo, herança e renovação, corpo e espírito, resistência e criação.

Mestre Pastinha foi um alicerce histórico e simbólico da Capoeira Angola. Codificou e difundiu o estilo, enfatizando um jogo cadenciado, de dentro, carregado de mandinga e de valores culturais profundamente enraizados na tradição afro-brasileira. Para ele, a capoeira era também filosofia de vida, onde musicalidade, ritualidade e ética tinham tanto peso quanto os movimentos físicos.

Mestre Camisa (José Tadeu Carneiro Cardoso), discípulo de Mestre Bimba, surge em um contexto posterior, quando a capoeira já se expandia para além do Brasil e buscava maior sistematização pedagógica. Seu trabalho dialoga tanto com a Angola quanto com a Regional, mas vai além: cria propostas próprias, de caráter pedagógico, organizacional e técnico, que deram origem à ABADÁ-Capoeira, hoje uma das maiores instituições de capoeira do mundo. Enquanto Pastinha consolidava a Angola como guardiã da tradição, Camisa projetava a capoeira para o cenário internacional, unindo tradição e modernidade.

Herança da Angola e preservação tradicional

Mestre Pastinha estruturou a Capoeira Angola em instituições como o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), no Pelourinho, organizando a prática e reforçando elementos como o uniforme amarelo e preto, os cantos tradicionais e o respeito às regras da roda. Ele defendia que a capoeira não era apenas luta, mas um diálogo, um jogo de astúcia, paciência e sabedoria.

Mestre Camisa, embora formado na Regional de Bimba, reconhece e valoriza esse legado. Em sua metodologia, incorporou a importância da mandinga, da musicalidade e do jogo ritualizado, mostrando que a inovação não precisa romper com as raízes. Assim, sua proposta pedagógica mantém viva a essência cultural e filosófica da capoeira, mesmo ao se expandir para novos públicos e contextos.

Inovação e pedagogia organizada

Enquanto Pastinha enfatizava a preservação dos modos antigos, Camisa percebeu a necessidade de estruturar um modelo de ensino capaz de dialogar com a modernidade. Criou um sistema pedagógico formal, com graduações, núcleos espalhados em diversos países e uma metodologia que alia técnica, disciplina e consciência histórica. Sua proposta permitiu que a capoeira fosse ensinada em escolas, universidades, academias e projetos sociais, alcançando milhares de praticantes em diferentes partes do mundo.

Entre suas inovações estão as sequências técnicas progressivas, que permitem ao aluno evoluir gradualmente do domínio da base — ginga, esquivas, ataques — até combinações mais complexas. Essa pedagogia estruturada não apenas fortalece o corpo, mas também forma cidadãos conscientes do valor cultural e social da capoeira.

Diferenciações no jogo e no estilo

O jogo de Pastinha é marcado por movimentos baixos, estratégicos e sutis, realizados em cadência lenta ao som do berimbau, onde a mandinga e o improviso são elementos centrais. Sua capoeira enfatiza a paciência, a observação e a malícia, características que tornaram a Angola um estilo único e respeitado.

Já Camisa, sem abandonar esses aspectos, buscou expandir as possibilidades corporais. Trabalhou movimentos mais amplos e atléticos, exigindo preparo físico e técnica refinada, adaptando o jogo também para palcos, espetáculos e intercâmbios culturais internacionais. Assim, sua proposta equilibra a dimensão tradicional com a dimensão contemporânea, abrindo caminhos para a capoeira no cenário global.

Legado compartilhado

A comparação entre Pastinha e Camisa oferece material valioso para compreender a evolução da capoeira: de tradição oral à metodologia documentada, da roda de bairro à instituição global. Ambos os mestres partilham a visão da capoeira como patrimônio cultural e instrumento de formação humana.

Pastinha entendia a capoeira como diálogo, e não apenas como combate, defendendo valores como respeito, ritualidade e identidade afro-brasileira. Camisa, ao fundar a ABADÁ, reforçou esses princípios, mas somou a eles a disciplina organizacional, a pedagogia estruturada e a integração social através do ensino em larga escala. Juntos, representam dois polos que, em diálogo, mostram a riqueza e a vitalidade dessa arte que é, ao mesmo tempo, tradição ancestral e expressão contemporânea.

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